De pin-up a estrela de Hollywood, a vida breve de Marilyn Monroe ficou registada numa avalancha de imagens - uma exposição de fotografias em França faz o inventário dessa memória.
Será que ainda há fotografias inéditas de Marilyn Monroe? A pergunta envolve esse assombramento amargo e doce que associamos à memória trágica de algumas estrelas de cinema. Dir-se-ia que o nosso egoísmo visual favorece a ilusão de que o aparecimento de imagens desconhecidas é um evento mágico que corresponde a uma perversa forma de resgate: cada imagem acrescentada à mitologia relança a sua energia simbólica, afastando a certeza irreversível da morte.
Em todo o caso, sejamos práticos, ou melhor, realistas. Vale a pena repensar o assunto de modo menos crispado e celebrar as imagens, todas as imagens, que já conhecemos. Porque, afinal, o seu poder é tão ancestral quanto o dos bichos desenhados pelos homens das cavernas - cada uma dessas imagens regressa sempre igual, sempre diferente, como se o nosso extasiado olhar fosse o guardião de um saber cristalizado para todas as eternidades.
Assim se apresenta a exposição dedicada a Marilyn que, a partir de hoje (até 1 de maio de 2017), está disponível em Aix-en-Provence, no Sul de França, a cerca de 150 km de Cannes. Quem a propõe é o Hotel de Caumont/Centre d"Art, instituição gerida pela Fondation Culturespaces que tem também a seu cargo, entre outros espaços culturais, o Museu Maillol de Paris e o Théatre Antique em Orange. O título contém uma demanda de amor - "Marilyn: I Wanna Be Loved By You" -, definindo também uma lógica informativa e didática: trata-se de dar a ver a trajetória dessa mulher que nasceu com o nome de Norma Jeane Mortenson (1926--1962) através dos olhares de alguns fotógrafos de eleição.
O vestido esvoaçante
Por onde começar? Talvez por uma daquelas imagens que todos identificam como um ícone, mesmo quando não conhecem o filme a que pertence: Marilyn está numa rua de Nova Iorque, fazendo pose sobre uma grelha do metropolitano; o ar que vem das entranhas da terra (a metáfora é irresistível) levanta-lhe o vestido, reagindo ela com a alegria ambígua de uma menina que não sabe se está a confirmar as nobres exigências do pudor ou a testar o seu potencial de sedução.
Deixemos a resolução do enigma para os espectadores de pensamento mais arrumado. Lembremos apenas que se trata de uma cena do filme The Seven Year Itch (1955), do mestre Billy Wilder, comédia pouco ortodoxa sobre a atribulada convivência de um homem casado, interpretado por Tom Ewell, com a vizinha do lado (Marilyn) - entre nós, para evitar confusões, chamaram-lhe O Pecado Mora ao Lado. A fotografia é, ela própria, um sugestivo mapa mitológico: Marilyn está a ser didaticamente observada por Ewell, mas a metade direita da imagem surge ocupada por um batalhão de figuras (técnicos e mirones) que definem o próprio poder do evento cinematográfico. A saber: ocupar a banalidade do quotidiano e, através da presença de uma star, transformar a evidência realista em matéria de lenda.
Quem assina a imagem do vestido ondulante é Sam Shaw (1912--1999), fotógrafo de uma sensualidade à flor da pele que alguns espectadores portugueses recordarão com especial emoção: em 1992, a convite de Mário Ventura e Salvato Telles de Menezes, foi uma presença fascinante e inesquecível no Festival de Tróia (entretanto, há cerca de um ano, a sua obra foi evocada numa exposição organizada pela Fundação D. Luís, no Centro Cultural de Cascais).
Shaw, que também foi produtor de filmes do seu amigo John Cassavetes, deixou um legado muito rico e original, em particular através do modo como fotografou Marilyn e Marlon Brando, o próprio Cassavetes e a sua mulher Gena Rowlands. Numa altura em que as imagens de atores e atrizes eram ainda rigorosamente controladas e difundidas pelos grandes estúdios (assim impunha a lógica do bem chamado star system), Shaw privilegiava as situações de luz natural, os gestos espontâneos, a ausência de maquilhagem. São especialmente tocantes as fotografias que obteve ao longo de um período de férias no Verão de 1957, em Amagansett (Nova Iorque), passadas na companhia de Marilyn e do então seu marido Arthur Miller - registado por Shaw, o riso de Marilyn envolve uma candura radical, como se os artifícios da pose tivessem dado lugar a uma entrega sem mágoa, vislumbrando-se a verdade mais íntima da esquecida Norma Jeane.
O arco temporal da exposição corresponde a uma saga de impecável dramaturgia: revelação, ascensão, apoteose e ocaso. Tudo começa com as primeiras fotografias assinadas por Andre de Dienes (1913-1985), para se concluir com a célebre "sessão final" que Bert Stern (1929-2013) registou um mês antes da morte de Marilyn (The Last Sitting, de acordo com o título do livro de 1982 que organizou a respetiva memória).
História de uma pin-up
Nascido na Transilvânia, no então império austro-húngaro, Dienes fixara-se em Los Angeles na década de 1930. Quando conheceu Norma Jeane em 1945 - ele com 32 anos, ela com 19 -, fotografou-a ao longo de uma viagem de milhares de quilómetros através dos estados de Califórnia, Arizona, Nevada e Oregon, com um resultado paradoxal: o portfolio corresponde ao bloco-notas de uma história de amor e também ao nascimento de uma "pin-up". Afinal de contas, a própria Marilyn nunca escondeu que as suas poses iniciais, para revistas e calendários, corresponderam a uma muito básica forma de sobrevivência. Entre as imagens desse período, o lendário nu assinado por Tom Kelley em 1949 entraria na mitologia erótica da década seguinte, ao ser publicado, em Dezembro de 1953, na primeira edição da revista Playboy.
Grandes mestres do século XX estão, obviamente, representados, incluindo Cecil Beaton (1904-1980), Philippe Halsman (1906-1979) e Milton Greene (1922-1985), este último o que mais a fotografou no período de maior glória em que protagonizou filmes como Niagara (Henry Hathaway, 1953), Os Homens Preferem as Louras (Howard Hawks, 1953), Rio Sem Regresso (Otto Preminger, 1954), o já citado O Pecado Mora ao Lado e Paragem de Autocarro (Joshua Logan, 1956).
Em qualquer caso, talvez só o muito pouco lembrado Ed Feingersh (1925-1961) se tenha aproximado da sensação de intimismo e cumplicidade que encontramos nas fotografias assinadas por Sam Shaw ou Andre de Dienes. Foi o próprio Milton Greene que lhe propôs a tarefa de retratar os bastidores de trabalho de Marilyn. Feingersh apenas a acompanhou durante uma semana (de 24 a 30 de Março de 1955), mas o seu portfolio sabe dar a ver tanto o elaborado aparato dos ensaios quanto a vulnerabilidade de uma "mulher como as outras", na altura a viver de forma discreta no Ambassador Hotel, por vezes deambulando, incógnita, pelas ruas de Manhattan.
Como se escreve no texto de apresentação da exposição de Aix-en-Provence, a relação de Marilyn com a fotografia enraíza-se num tempo anterior à entrada no universo de Hollywood: "Desde muito jovem, devorava as revistas de cinema e as suas imagens idealizadas, despertando-a para o interesse pela fotografia. Ao começar como modelo e "pin-up", rapidamente se apercebeu de como a imagem seria importante no lançamento da sua carreira no cinema."
Resta não esquecer que o título da exposição, "I Wanna Be Loved By You" (à letra: "quero ser amada por ti") é o verso de abertura, e também o título, de uma canção que Marilyn canta nessa obra-prima da comédia clássica que é Quanto Mais Quente Melhor (1959), de Billy Wilder. No refrão, ela acrescenta alguns sons plenos de promessas: "Boob-boop-a-doop!"... Há coisas que, de facto, importa não tentar explicar.
Fonte: Diário de Notícias
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