A falta de consenso por parte da comunidade académica sobre a definição de inteligência artificial (IA) não nos impede de a caracterizarmos de uma forma simples para efeitos do presente artigo: a IA é um ramo da engenharia informática que visa replicar a forma de aprendizagem do cérebro humano. A possibilidade de gerar obras é uma dessas capacidades. À medida que a IA avança, isto implica que, eventualmente, pouco ou nenhum contributo humano estará envolvido na criação destas obras. Neste sentido, os sistemas de IA não estão apenas a ajudar os seres humanos, mas já são capazes de gerar automaticamente obras literárias ou artísticas. O retrato do “The Next Rembrandt” é um exemplo.
O retrato consiste numa pintura gerada pela tecnologia de impressão 3D desenvolvida por um algoritmo que analisou centenas de pinturas do famoso pintor Rembrandt, num processo que durou 18 meses a ser concluído. Baseia-se em quase 170 mil fragmentos das obras do pintor holandês armazenados numa base de dados especialmente concebida para o efeito. O objectivo era produzir uma pintura que se aproximasse o mais possível das pinturas reais de Rembrandt. Mas existem mais exemplos: composições musicais do Google DeepMind, um romance escrito por software de IA, ou a denominada “The First Thinking Sculpture” inspirada em Gaudi. Exemplos destes continuarão a aumentar, podendo a IA tornar-se, dentro de pouco tempo, a principal fonte de cultura.
Esta questão não é totalmente nova. De facto, a mesma iniciou-se em meados do século XX, com as denominadas “obras geradas por computador”. À medida que os computadores foram sendo introduzidos como instrumentos de auxílio no processo criativo do ser humano, esta problemática foi-se colocando com cada vez mais acuidade. Não obstante, a maior parte dos casos respeitantes a obras geradas por computador, mais do que a ausência total de contributo criativo humano, estavam relacionados com a dificuldade em identificar o contributo do autor, embora este existisse.
Ora, o problema com que nos deparamos actualmente é distinto: a IA permite a criação de obras onde não existe qualquer contributo humano para o processo criativo, ou, pelo menos, o mesmo não é suficiente para que possamos afirmar que o requisito da originalidade, exigido para a protecção deste tipo de obras, está preenchido.
Foi este o problema que se confrontou o US Copyright Office recentemente. Um cidadão norte-americano, Sephen Thaler tentou registar uma obra de arte denominada “A Recent Entrance to Paradise”. Como é possível ver abaixo, dificilmente se consegue distinguir esta obra como outra qualquer elaborada por um ser humano.
Este foi o seu segundo pedido baseado numa obra criada por inteligência artificial. Desta vez, Thaler alegou que a exigência de uma “autoria humana” seria inconstitucional. Porém, o instituto americano manteve o raciocínio das decisões anteriores: a criação da obra terá de ser fruto de um esforço do intelecto humano. Caso este “esforço intelectual” do ser humano não seja provado, a obra não gozará de protecção por direitos de autor.
Esta é mais uma das decisões que vem contribuir para o esclarecimento desta questão. Em vários pontos do globo têm sido apresentados registos de direitos de autor ou de patentes criados por IA. As decisões têm sido quase unânimes: estando a criação intelectual vinculada ao ser humano, só as obras criadas por este deverão ser protegidas. Neste sentido, as obras criadas por inteligência artificial não serão protegidas, permanecendo no domínio público.
No entanto, à medida que o espaço cultural vai ficando mais preenchido com obras criadas por IA, vislumbra-se que será cada vez maior a pressão para proteger este tipo de obras. Neste âmbito, é de prever que o requisito da originalidade seja novamente desafiado, numa tentativa de provar que até as obras criadas por inteligência artificial terão algum contributo humano. Esta solução representaria uma “redefinição” do conceito de originalidade da obra intelectual, de modo a torná-lo compatível com (novos) avanços tecnológicos. Pegando no exemplo relativo à obra “The Next Rembrandt”, o raciocínio seria provar que a criação não deixaria de ter em conta as escolhas realizadas por seres humanos, nomeadamente as relativas à recolha e selecção de dados que são introduzidos no sistema de IA.
Finalmente, independentemente do referido, algumas obras criadas por inteligência artificial poderão, ainda assim, obter protecção por direitos de propriedade intelectual. Esta protecção será indirecta e poderá dar-se por meio de direitos conexos relativos a fonogramas. De facto, não podemos esquecer que a protecção dos fonogramas pode incluir obras protegidas por direitos de autor, obras que foram protegidas, mas que estão agora do domínio público ou até obras que nunca foram protegidas por direitos de autor. Uma vez que não há nenhuma exigência de que os sons a serem protegidos derivem de uma criação intelectual (que inclui sons da natureza, tais como canções de aves ou outro tipo de ruídos naturais), é perfeitamente possível que as obras geradas por IA, mesmo que nunca tenham sido protegidas, possam estar sujeitas a gravação e, portanto, serem protegidas por este direito conexo. Esta protecção será, no entanto, indirecta e estará sujeito a um âmbito de protecção distinto daquele que goza o direito de autor. Ainda assim, não deixará de constituir uma forma de obter “exclusividade de uso” no que diz respeito a algumas obras criadas por inteligência artificial.
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