Apandemia veio acelerar o tempo e a mudança. O teletrabalho é exemplo disso. Imaginado como ficção científica durante décadas, possível há alguns anos graças à tecnologia já vulgarizada e disseminada, mas apenas posto em prática por completa necessidade durante a quarentena. Passa assim, em poucos meses, de projeto (sonhado, mas adiado) a coisa do tempo corrente, da vida real, da pessoa comum.
Outra coisa que se avizinha é a aplicação da realidade virtual, de forma corriqueira, na substituição das diversas experiências imersivas que se tornaram desaconselhadas. Concertos, viagens, jogos de futebol, peças de teatro certamente passarão a ser vividos em simulacro privado, no conforto do lar de cada um, como se estivéssemos mesmo lá, mas sem viroses ou desconfortos, e com mil novas possibilidades.
Poderemos ver um concerto tal qual aconteceria num festival, o mais fielmente possível, com todos os estímulos sensoriais emulados pela interface, ou escolher inovar, optando por uma experiência diferente, substituindo o artista por um avatar “melhorado”, mudando o cenário ou escolhendo o repertório. Será possível ver a Madonna ruiva e vestida de colegial, ou Pavarotti em corpo de trintão musculado, um Marilyn Manson com anatomia de ET, ou viajar no tempo para assistir ao concerto de Jimi Hendrix em Woodstock como se lá estivéssemos mesmo, com cheiro a erva incluído.
Nas férias, em vez de pagarmos milhares de euros por um voo de várias horas e de tomar vacinas para doenças tropicais, poderemos viajar até uma ilha paradisíaca para uma semana de praia virtual, sem sair do sofá da sala. Ou mesmo ir para a Paris dos anos 20, beber vinho nos bares dos artistas e ter grandes conversas com Hemingway, como naquele filme do Woody Allen. Aliás, poderemos ir passar férias a um filme, aproveitar as paisagens da Lagoa Azul, viver a adrenalina do Mad Max, ou ficar unha e carne com Amélie Poulain. Resumindo, haveria experiências (individuais ou em grupo) para todos os gostos, como naqueles vouchers que se oferecem em aniversários.
E se, para alguns (como eu), esta ideia parece sinistra, para as novas gerações, nascidas na era da internet, isto é básico como a água da torneira. Não só porque a pegada ecológica destas experiências será bem menor do que a pegada ecológica dos festivais e das viagens a sério, mas porque, para eles, esta noção de participar-estando-só é o pão nosso de cada dia. Das aulas online aos jogos em rede, passando pelas mil comunidades imaginadas a que escolhem pertencer (como os fãs de K-pop do Ocidente), viver entrando e saindo de RPG como quem troca de linha no metro já é quotidiano.
Aliás, essa distinção entre vida real e vida online, identidade e avatar, relações de proximidade e relações à distância, já não faz sentido para eles, porque podem sentir-se mais próximos de quem está do outro lado do globo, mas em permanente contacto no WhatsApp, podem identificar-se mais com um nickname do que com o seu nome de batismo e podem viver mais intensamente o jogo do que o quotidiano escola-casa. E tudo isto, mesmo parecendo perverso, tem sido acentuado nos últimos meses, nesta experiência de ser criança e adolescente sem escola, relacionando-se com o mundo através do ecrã, quando a escola era precisamente o último reduto de sociabilidade não online para muitos.Poderão a música ao vivo, o desporto no estádio, o turismo como o conhecemos competir com a realidade virtual? Só por pouco tempo. Não apenas por todas as possibilidades que pode acrescentar a estas “velhas” experiências, mas também porque já nem o sexo parece conseguir competir com a pornografia, ou mesmo com a Netflix, na geração que (segundo indicam os estudos) tem menos interesse em fazer amor.
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